19 dezembro, 2010

Campanha ATEA

Vetaram a campanha da ATEA, mas aqui vai um pequeno post de apoio.

08 novembro, 2010

Um peixe morreu!

Um peixe morreu, pai!

O mundo parou. Então a morte existia. A morte, a improvável morte, chegara.

Um peixe morto: barriga inchada, olhos baços.

Um pequeno néon.

Até o nome que lembrava luz havia se apagado.

O que fazer?, algo novo havia surgido e uma coisa que era permanente havia se quebrado.

A gente compra outro, filha. Joga na privada.

Mas a morte tinha feito seu serviço. E dali por diante tudo pareceria instável: o ar, os peixes; e principalmente o vidro com certeza se quebraria mais cedo ou mais tarde.

foto: Mark Kubiszyn - Dead fish on canvas

03 novembro, 2010

Garota, eu vou pra Califórnia… ou não


Não foi dessa vez, na terra do governador Terminator o povo disse não. Agora só me resta a esperança de legalizarem o chiclete em Cingapura.

27 outubro, 2010

Os escritores e suas bundas



Todo escritor, que mereça ser chamado assim, sabe que se escreve muito mais com a bunda que com qualquer outra parte do corpo. É sentando horas seguidas em frente à folhas em branco (leia-se páginas do Word) que se consegue alguma coisa mínima que seja para se chamar de literatura, boa ou ruim, tanto faz. É tanto que a maioria vai com o tempo ficando encurvados, alguns também ficam gordos, e de bunda chata. Eu tenho feito o possível para não ficar assim, e outro dia ouvi o elogio de que minha bunda está bem, o que me deixou satisfeito com o resultado das cansadas corridas que faço três vezes por semana. Mas também me deixou na dúvida se sou mesmo um escritor, já que não possuo o apanágio dos escritores: a bunda quadrada. Mas um pensamento me salvou: Bruna Surfistinha. Convenhamos, ela tem uma bunda bastante elogiável. E é escritora, certo? Assim como Virginia Woolf e Hemingway, que eu não sei como tinham as bundas. Não é? Hein? Ufa, que alívio!

23 outubro, 2010

Quase

Diz que foi no sul de Minas, que a moça tentou se matar com um tiro no peito depois que o noivo terminou com ela.

Morreu?

Não. Quase. Errou. E passou a vida apelidada de ruim de mira.

17 outubro, 2010

Receita de Bolo Abstruso

Perguntaram o que eu penso da censura à imprensa no Brasil de Lula. Aí vai:

½ xícara de óleo em pó
3 cenouras médias cortadas em pedaços grandes em um processador pequeno
4 ovos ralados
2 xícaras de chá de porcelana de presente de casamento de açúcar
2 e ½ xícaras de farinha de trigo para três tigres tristes
1 colher de sopa de fermento biológico, escatológico e analógico em pó

cobertura:

1 colher de sopa de manteiga de leite de burra
3 colheres de sopa de chá de caldo de geléia de creme de chocolate em pó
1 xícara de açúcar da Colômbia com no mínimo 20% de pureza
1 frasco médio de Biotônico Fontoura

Reserve os tigres e o fermento. Bata no liquidificador a cenoura com os ovos e o óleo, acrescente o açúcar e bata por uns 5 minutos, ou até se cansar, ou até ele pedir clemência. Depois misture lentamente o fermento, mas lentamente mesmo, de preferência nem misture. Asse por 40 minutos ou o tempo médio que dura um discurso de deputado homenageando poeta morto que ele nunca leu. Para a cobertura misture todos os ingredientes, leve ao fogo até virar uma calda e espalhe por cima do bolo. Sentado no chão da cozinha raspe e coma o que sobrar da cobertura com uma colher de pau enquanto ainda estiver quente, tenha dor de barriga, e só durma no próximo mês graças ao açúcar colombiano. Beba o Biotônico para crescer fortinho.

Dizem que Fernando Sarney come de se lambuzar!

PS: O Google sugere: Consulte resultados traduzidos do inglês para: imprensa Lula (calamari press)

15 outubro, 2010

Update borgiano

Uma criatura nova que Borges esqueceu de catalogar em seu O livro dos seres imaginários:

Dilmáquio Rousseffalion

Segundo a mitologia brasileira contemporânea existe determinado ser que possui a capacidade singular de lentamente rejuvenescer o seu rosto, também sabe aparentar ser tanto crente como herege, dependendo das vantagens da situação. Esse seria o Dilmáquio Rousseffalion. Certas fontes dizem que tem intenções de arrancar os fetos das barrigas de suas mães com o interesse de deles se alimentar, outras, porém, afirmam que apenas deseja libertar as mulheres do peso imposto pelos dogmas de outras crenças baseadas também em seres imaginários, como Deus. Há quem diga que conspira com a ajuda de outras entidades assemelhadas para roubar o ouro dos homens, outros que quer distribuir o ouro entre os menos afortunados. Consta que em tempos passados já foi um guerreiro revolucionário. Sobre uma criatura tão incerta sabe-se muito pouco. Na hierarquia da zoologia fantástica está logo abaixo do Dirceodonte que por sua vez é inferior ao Lulicórnio de nove dedos. Seu arqui-inimigo é um vampiro de olhos profundos cujos dentes são de Serra.

09 outubro, 2010

John Lennon setenta anos

John Lennon faria hoje setenta anos, na época em que ele morreu, com Vietnã recente e tudo o mais, já era difícil acreditar na idéia de uma humanidade progredindo. Mas hoje, com toda a ignorância se repetindo quase das mesmas formas, com teocracias se impondo, e manobras políticas de intolerância étnica feitas para agradar à crescente direita extremista idêntica à que protagonizou alguns dos piores massacres do século XX, e até vindas hoje dos povos que sofreram com tal, a mesma fome e um monte de outras guerras iguais às de sempre, embora a água contaminada ainda mate mais crianças que todas as guerras juntas, isso em tempos de genoma sequenciado e clonagem já virando rotina, com tudo isso dá mesmo para pensar em progresso verdadeiro se somos ainda governados pelos mesmos conceitos e medos pré-medievais e o que fazemos de novidade são apenas computadores mais leves?


07 outubro, 2010

Hora-certa

Hora-certa era um mendigo que não se destacaria de nenhum outro se não fosse por uma mania: acompanhava todos os enterros no cemitério, religiosamente. Era o folclore da região, juntava a molecada para ver Hora-certa chorar o morto – e ele chorava bem, pesaroso e inconformado. Tinha até quem brincava com ele: Quando eu morrer quero te ver lá, Hora-certa.

Quando morreu o ex-prefeito, figurão famoso, os parentes não quiseram deixar Hora-certa assistir. Assim que ele apontou na rua, foram fechando os portões do cemitério. Chegando ao portão fechado ele olhou, margeou o muro, espiou pelas grades e voltou a esperar do lado de fora. Quando viu que ninguém ia abrir para ele, gritou:

– Enfia esse defunto no cu! – e foi-se.

28 setembro, 2010

De noite, no quartel

Você sabe que é quando eles perdem o medo das armas que os acidentes começam a aparecer. Até o primeiro mês nada. Depois os soldados gostam de ver as balas pularem. Eles ficam sentados sem ter o que fazer puxando o ferrolho do fuzil pra fazer elas saltarem por cima da perna. Volta e meia essas merdas disparam sem querer. É por isso que a gente grita com eles e xinga a mãe deles, pra eles não relaxarem. Porque é quando eles começam a ficar íntimos das armas que os acidentes acontecem. De vez em quando esquecem que está carregado e morre um.

Ano passado era um soldado que estava detido na cadeia do quartel, por qualquer coisa, uma merda qualquer, e tinha um outro do lado de fora montando guarda que disse, pra tirar uma com a cara do soldado preso, que iria soltá-lo aquela noite pra ele ir ver a namorada. Sabe o que o cara fez? Deu um tiro no cadeado. Segurou o cadeado na mão, apontou a pistola e atirou. Como nos filmes, sabe? Como eles fazem pra arrebentar cadeados nos filmes. Só que com o cadeado na mão. É claro que ele estourou a mão toda, quase tiveram que amputar. E foi reformado sem direito a merda nenhuma por causa disso. Um rapaz novo, até gente boa, mas cabeça fraca. Onde já se viu, segurar o cadeado na mão e atirar.

10 setembro, 2010

Poema para os poetas que não chegaram lá

E agora, José?
E agora, Raphael?
E agora, João?
E agora, ambição?
Drummond morreu pobre.
Bandeira, remediado.
João Cabral só não morreu pobre porque foi diplomata.
Você vai morrer pobre?
Porque, convenhamos, diplomata você não vai ser.
Então, como faz?
Aprende cirurgia?
Tenta a loteria?
Insiste em veterinário?
Vira funcionário
público?
E então, como faz?
O dinheiro acabou,
o mês, ainda não.
O leite sobrou,
mas já era o pão,
cujo preço, não cabe neste poema.
Ferreira Gullar escreve pra Folha.
Você não imprime,
pra economizar folhas.
Paulo Leminski dava aula em cursinho.
Mas você tem medo de dar aulas.
E também ele falava latim,
e tudo se resolve mais fácil pra quem fala latim.
Você nem o inglês sabe direito.
Vá tentar a vida em Pasárgada,
onde você não é chegado nem de um vereador.
Você vai mesmo é acabar que nem aquele bicho,
aquele que era um homem, meu Deus.
Você, que nem em Deus acredita.
Ah, Raphael... você nunca vai ter jeito!

05 setembro, 2010

O olho de vidro do professor

Vem ele, o esquerdo seguindo o que ninguém vê, um passarinho hipotético congelado numa prótese esférica e baça, o direito mira impiedoso: Vocês não estudaram nada? Vai ter outro teste no final da aula! Será possível que vocês não conseguem acertar um probleminha desses? Eu tô ensinando um monte de mongolóides? Vocês não têm disciplina?

Professor, eu posso ir no banheiro?

Não, aguenta, moleque!

“Frita o peixe vigiando o gato!”

Burrice tem limite, dona Débora! Você viu o que escreveu no seu teste? Eu vou ler pra turma toda poder rir com as pérolas da senhora.

“Ciclope safado!”

Presta atenção, senhor Pedro! Isso aqui não é parque de diversões, deixa de olhar pela janela, você tem que prestar atenção é no que eu digo, e só! Tá procurando o quê, a mamãezinha com leitinho morno? Você não está na sua casa, rapaz.

“Ah, se eu tivesse coragem: Professor, empresta esse seu olho pra eu jogar uma birosca?”

27 agosto, 2010

O que mais ainda falta inventar?

Agradecimentos à Jamille que me indicou o vídeo.

23 agosto, 2010

Tragédia

Ela tinha essa mania de dormir fumando. Quando chegaram os bombeiros o fogo já havia queimado até os ossos.

14 agosto, 2010

Cachorridade


Eles são de modo geral magros, famintos, feiosos, e experientes rasgadores de sacolas: comem o que há para comer. Têm uma orelha caída e a outra levantada. Mancam de uma pata. O banho é da chuva, que só piora o aspecto e levanta um cheiro tão deles que é conhecido pelo nome que têm. Esses cachorros de rua, lobos da cidade, asselvajados, seus instintos atiçados por conta da falta de coleira, fora o que aprendem de moderno por força da necessidade, como a destemida arte de atravessar as ruas desviando dos carros, são bichos que criados pelo homem e abandonados pelo homem aprenderam a levar em relação a nós uma vivência paralela.

São um efeito secundário da urbanização, como os mendigos, porque em cidade pequena quem é bêbado e doido todo mundo sabe quem é, e filho ou tio de quem é, assim, não se deixa dormir na rua quem se conhece, mesmo que seja para não dizerem que a família não tem dó. Também os cachorros na roça têm cada um a sua casa, ainda que só passem por ela para rapar o resto do almoço.

A experiência da rua ensinou por costume a esquivar das pernas das pessoas: sempre esperam um chute. Mas nem todos são de uma diplomacia tão esquiva com o ser humano, uns deles são companheiros fiéis de homens que também são de rua, e formam entre si a matilha de vira-latas mais original.

Sem vacina e xampu, não têm inveja dos cães das casas que olham através das grades nos jardins, e às vezes oferecem uma cheirada focinho a focinho, um cumprimento entre indivíduos de uma espécie sem preconceitos. Imperadores das noites vazias, perturbando as madrugadas das pessoas de bem, combatendo por fêmeas no cio disputadas a rosnados e agudos caninos que ameaçam a carne inimiga – no meio da confusão, até o que o rabo caiu amputado pelas bicheiras acredita que tem a sua chance; eles vivem pouco, média de três anos, é o que se diz, mas plenos de uma coisa que se pode chamar, sem preocupação com estilo, de “cachorridade”.

09 agosto, 2010

Dieta

E apalpando as costas como quem diz: Hoje eu não comi nada!, finalmente o gordo se satisfez de fome.

24 julho, 2010

Urso

O porco é um animal inteligente, mais que o cachorro. Pouca gente sabe. Tratado bem é o bicho mais manso; agora, se não, vira uma fera, volta no javali que é de onde veio. Você já viu como eles são perigosos na hora que querem: aqueles dentes que eles têm escondidos, que batem o de cima no de baixo afiando sem parar... igual facas! Se você juntar dois cachaços eles brigam até morrer um só ou os dois.

Já vi notícia de um porco que se criou solto, cresceu num monstro. Matava e comia as vacas das fazendas, como se fosse uma onça. Mataram no tiro. Eu não duvido.

Urso é uma outra história, tinha sido comprado para reprodutor ainda novo, e o dono da granja deixou ele com o seu Sebastião para ser criado de perto, valia muito. Tião era o tratador da granja, um homem pequeno que mexia com porco desde pequeno, sempre visto calçando as botas de borracha que usava para cuidar dos porcos. Ele levava Urso para cruzar as porcas, soltava para tomar sol e exercitar, criava na mão, como se diz.

Os porcos não ficam muito tempo na granja, nem as matrizes que, arrebentadas de tanto fabricarem leitões, são descartadas depois de uns anos. Mas Urso foi ficando, era um bom reprodutor: muito grande, do tamanho de uma vaca, e muito manso. Quase amestrado. Sebastião toda vez que perguntava: Né, Urso? O bicho balançava a cabeça. Todo mundo gostava, e diziam, brincando ou advertindo o dono da granja, que Urso tinha de morrer de velho, tinha de ser preservado como de estimação. E até o patrão achava boa a idéia. Seus filhos pequenos quando chegavam para visitar a granja iam logo correndo até onde o porco ficava, e ele vinha cheirar as crianças que gostavam de coçar a sua cabeça até ele deitar e dormir, roncando como um porco.

Sebastião vinha dar comida, as crianças em volta, e Sebastião perguntava: Não tem nenhum porco maior que você aqui, né, Urso? E o porco respondia. Ninguém aqui é mais porco que você, né, Urso? E o bicho balançava a cabeça. Até a mulher de seu Sebastião fazia graça: Tião e o seu amigo porco!

À tarde o tratador gostava de sentar no cercado onde crescia um mato falho das fuçadas dos porcos, com o sol lhe esquentando o chapéu, soltava Urso para o animal se espojar, e cortava um fumo de rolo, grosso, que picava bem miúdo para fazer seus cigarros, o porco vinha atrás daquele cheiro doce e Tião jogava um pedaço maior na boca dele para ele mascar: Fumo bom é esse, né, Urso...

Numa manhã de calor Sebastião limpava a baia de Urso, subindo e descendo do muro para contornar o bicho que gostava de ir cheirar as mãos do homem, que era de onde aprendera que vinha a comida. Somos bons amigos, né, Urso? O porco balançou a cabeça como sempre, mas esbarrou seu dente, maior que o dedo de uma mão grande, na coxa de Sebastião que descia do muro, acertou a perna por dentro, cortou aquela artéria grossa que tem por dentro na perna. O homem gritava o porco gritava. E o povo veio acudir sem saber o que era, mas o sangue aguava o chão do chiqueiro, e puxaram o homem de dentro da baia pelos braços, mas não tiveram tempo de salvar o homem. Seu Sebastião tinha 53 anos.

Mataram o porco no dia seguinte. Mataram por matar, de raiva e de medo. Porque nem a carne de porco que não é castrado dá para comer, tem um cheiro que não se suporta.

19 julho, 2010

Medo...

Não sei se alguém já reparou, mas tem uma quantidade enorme desses pombos imundos da cidade que tem os pés deformados. Uns tem só uma bolinha de carne na ponta de uma das patinhas que vão calejando pelo asfalto. Sinal do fim dos tempos, provavelmente.

14 julho, 2010

Uma escova de dentes para viagem

Nunca se lembrava até a hora de viajar, aí que atinava da falta que lhe fazia ter uma escova de dentes para viagens. Das que se esconde a ponta invertendo-a dentro do próprio cabo, transformando o espaço que uma escova de dentes ocupa no de meia escova, isolando a parte que limpa os dentes e que deveria ficar sempre limpa. Um objeto extremamente prático. Higiênico. Inteligente. A prova da capacidade humana de criar a utilidade de forma simples e objetiva, funcional.

Então pegava uma escova comum, a sua de todo dia, e enrolava em papel-toalha depois de escovar os dentes pela última vez antes de sair, e jogava num bolso na mala de mão. E anotava mentalmente, como tinha o hábito de dizer, que deveria comprar uma escova de dentes para viagens quando voltasse, ou mesmo em alguma farmácia ou mercado na rodoviária quando lá chegasse, porque é lá que elas com certeza tinham que ser vendidas. Onde mais que onde se viaja? Então compraria lá mesmo, sempre haveria cinco minutos de folga.

Mas com dezenas de plataformas de embarque e pelo menos uns cinco portões diferentes quem se lembra de escovas?

No hotel escovava os dentes num banheiro inédito, que possuía novos interesses, como os azulejos invertidos, por exemplo, e ele não reparava tanto nela, ainda mais que tinha que sair e visitar e demonstrar e convencer, tudo dali a alguns instantes.

Na viagem de volta era um homem cansado, e homens cansados que trabalharam e dormiram em camas estranhas com cheiros estranhos de muitos estranhos, não se lembram de muita coisa a não ser da própria cama com o próprio cheiro.

E uma vez em casa ele era apenas cansaço, e só no dia seguinte que desfaria as malas, e ao pegar a sua escova de dentes de todos os dias e que já conhecia três estados da nação, ele outra vez se lembraria da falta que fazia possuir uma escova de dentes de viagem como já vira outros terem, outros mais prevenidos que ele. Desenrolava o papel da ponta de sua escova, ondulado de umidade, e jogava no lixo do banheiro. Usava a escova para o seu fim nobre, depois a recolocava no seu encaixe no armário na parede em cima do lavatório, que era onde ela se encaixava como se tivesse sido feita para ali se encaixar ou o encaixe que tivesse sido feito para que ela ali se encaixasse. Ali, não nos bolsos das malas onde deveria haver uma prática escova de dentes portátil, que ele compraria tão logo se lembrasse que deveria comprar uma, assim que precisasse de uma, da próxima vez em que fosse viajar. O que deveria ocorrer logo na semana seguinte, porque o seu trabalho exigia que viajasse sempre. Por isso mesmo que deveria comprar uma escova de dentes de viagem.

06 julho, 2010

Vinte e duas vezes

– Você ainda nega que teve intenção de matar o chefe da obra?
– Nego, doutor.
– Mas você deu vinte e duas facadas nele! Isso não é intenção de matar?
– Ah, doutor, eu dei só umas furadinhas no homem. Ele é que era um sujeito morredor!

27 junho, 2010

Vovô viu a vuvuzela da vovó!


A China é o paroxismo da setorização. Cada cidade produz uma coisa, uma faz relógio, outra, canetas Bic. 70% dos isqueiros do mundo vêm de uma única cidade chinesa, todo mundo lá vive de fazer isqueiros. Se tal produto para de dar lucro, a cidade correspondente de uma hora pra outra muda de função. Digamos, se os chinelos já não vendem como antes, os habitantes da cidade-chinelo, sem explicação alguma, são informados que de agora em diante vão começar a fazer liquidificadores. Kafka puro! E nem precisa dizer, nada custa mais que quinze centavos pra ser fabricado por lá. Com certeza existe uma cidade chinesa que faz essas malditas vuvuzelas. Tomara que vão fazer pastel de cebola depois da Copa do Mundo, o povinho de lá.

24 junho, 2010

O andar de cima

Seu Agenor é um sujeito aposentado, sua única ocupação é construir um novo andar para sua casa. Na casa moram apenas ele e a esposa, não precisam de outro andar. Mas Agenor insiste, afinal eles têm filhos e netos que podem muito bem precisar do novo andar um dia. Os amigos de seu Agenor já morreram quase todos, ou então estão muito longe, ou então muito perto porém já não têm contato. Como não tem mais amigos, seu Agenor faz dos pedreiros seus amigos temporários, pagando-lhes às vezes por dia de serviço às vezes por empreitada.

Agenor tem esperança de que os filhos venham morar com ele agora que está velho. Mas eles não têm a mesma intenção, e mal o visitam. Os netos não gostam de seu Agenor, os mais novos nem mesmo o conhecem.

Ele continua adicionando novos andares à sua casa, já está no terceiro novo andar que constrói e está preocupado porque as obras vão mal. Não que ele tenha pressa, seus projetos (complicados, cheios de idas e vindas) são sempre de execução demorada, mas o hábito impõe que ele se preocupe, afinal, é seu dever.

No fim do mês seu Agenor decidiu construir uma grande churrasqueira no último andar. Tudo bem, eles não fazem churrasco há anos, mas quando houver ocasião a churrasqueira estará pronta, enorme e caberá quanta carne se queira, para alimentar todos os filhos e netos, e amigos, de longe e de perto.

Os planos de seu Agenor agora se concentram em cobrir o terraço com um belo telhado fechado nas laterais para que a família fique confortável e privativa em suas festas. É claro que eles nunca fazem festas, mas sempre pode surgir uma oportunidade futura. O filho mais velho diz que o telhado vai cobrir a churrasqueira e a fumaça vai encher o terraço. Mas Agenor já teve a idéia de construir uma chaminé colossal que jogará para o alto a fumaça e as cinzas.

Seu Agenor morreu. Seus filhos e netos e todo o resto da família se reuniu no último andar da casa para velar-lhe o corpo. O velório virou a noite, ao amanhecer os parentes já estavam cansados e desanimados. Então alguém inventou de pedir cerveja, para homenagear o velho, e junto com a cerveja pediram carne. O churrasco já durava quatro horas quando acabou o carvão. Aí algum amigo, ninguém sabe se de longe ou de perto, teve a idéia de jogarem o caixão de seu Agenor na churrasqueira. Mas claro que esqueceram de tirar Agenor de dentro, e ele queimou até o fim do dia soltando sua fumaça pela chaminé, e a festa corria animada entre os parentes e amigos de seu Agenor.

23 junho, 2010

Blogosfera através dos tempos

Machado até tinha um blog elegante, mas não empolgava o povão. Polêmica boa mesmo quem postava era Nelson Rodrigues.

21 junho, 2010

Sangue

Ela sai mais cedo que eu, porque trabalha mais longe, e sou o número dois no uso do banheiro nos dias da semana útil. Então hoje quando levanto a tampa da privada: papéis higiênicos sujos de sangue espalham fiapos rubros na água; conclusão: ela está menstruada. Parece uma coisa feia dizer isso assim desse jeito; mas é um fato corriqueiro da vida que as mulheres ficam menstruadas, e como tal deve ser tratado. Mas não, espere um pouco, ela não pode estar menstruada hoje; mesmo que eu seja um homem, e portanto, ignorante às datas, disso eu tenho certeza, ela menstruou há uma semana. Eu tinha uma namorada, ou algo menos que namorada, que me enrolava com essa história de menstruação; mas era porque nos víamos com pouca frequência, às vezes com mais de vinte dias de espaçamento, então não havia jeito de lembrar qual tinha sido a última vez, e por isso ela me enrolava. Quando eu fazia uma grosseria qualquer, ou esquecia de alguma coisa da qual jamais podia ter me esquecido, aí, era certeza: ela ia estar menstruada. E é um ato muito de mau gosto conferir, ainda que discretamente, se uma mulher está mesmo menstruada. Tudo bem, também é feio falar dessas coisas menores, mas é um outro fato corriqueiro (e vergonhoso) da vida que os homens cogitam tais atitudes.

Então quando dá a hora do almoço arrumo um tempo e ligo para ela: Tá tudo bem com você, amor? tinha sangue na privada... O nariz... sei... E agora, já parou? Então tá. Beijo!

Parece uma espécie de egoísmo dos homens não lembrar que as mulheres também sangram por outros lugares, mas a natureza é mesquinha mesmo. Mas de repente, por causa disso, ela ficou mais perto de mim. Ela sangrou pelo nariz. Pode não ser nada de mais, uma cutucada com aquelas unhas finas, mas ela sangrou, vocês entendem? E por conta disso senti por ela uma ternura fora do normal. É uma pena que junto me apareça também a ideia imbecil de ela enfiando um Tampax no nariz para conter o fluxo. É uma calamidade o que somos nós homens!

Por via das dúvidas pergunto a uma das moças que trabalham comigo, pergunto a uma moça porque acho que um homem jamais saberia, pergunto a ela o que é bom para estancar um sangramento no nariz de uma pessoa. E ela me responde: Manda essa pessoa enfiar um Tampax no nariz! e sai andando num passo socado, muito brava. Se esse estresse todo é culpa do namorado, hoje essa aí vai estar menstruada, aposto. Ah, nós homens... que calamidade!

20 junho, 2010

Coadores e chicletes

Tem um cego velho numa esquina do centro que desde a origem do mundo vende coadores de café de pano, sentadinho numa cadeira de armar com a bengala dobrada do lado: Vende coadores bons e baratooooos! Nunca vi ninguém comprando. Eu também não compraria, nem desentupidores de fogão nem o giz chinês que mata barata, mata rato... Mas alguém deve comprar coadores bons e baratos, porque o cego está lá, mesmo sem mascar chicletes como o da Clarice Lispector. Talvez pra um velho e cego que vende coadores baratos chiclete seja um luxo danado.

17 junho, 2010

Clarineta

Ele era um rapaz realmente muito feio. Mas tocava clarineta tão bem na banda do colégio, no segundo grau, que todas as meninas se apaixonavam por ele. Fazia bastante sucesso, você sabe como as meninas são.

Por causa desse talento musical, entrou no curso de música, na faculdade, na capital. Mas para surpresa da família, retornou antes do fim do primeiro período, abandonando o curso.

Um amigo lhe perguntou: Por que você desistiu do curso de música? Na escola, respondeu ele, por causa da clarineta, eu me destacava dos outros, mas lá no curso, onde todos são bons músicos, eu sou só um cara feio.

16 junho, 2010

Feliz Bloomsday!

Seu Bloom, palmeirense velha guarda, comerciante de responsa, cismou de dar uma banda pelos lados do centro até a zona leste, terrinha de mano, só pra ver qualé. Entrou no bar errado e tomou uma escovada de um corintiano vida loka que ficou muito enfezado com a folga do gordo. Magoado, resolveu desembocar em Santos pra dar uma espiada nas tchutchucas. Lá pelas tantas encontrou com Stephen Dedalus de Souza que vinha de uma manifestação por aumento de salário dos professores do Estado. Os dois embicaram umas doses de Velho Barreiro e aproveitaram a coragem pra dar um pulinho na “casa das primas”, propriedade de Oscar Maroni, só pra apreciar. Como a coisa não fluiu bem devido ao preço da carne, os dois saíram de mansinho sem pagar a conta e foram dar uma mijadinha no jardim. Entrando em casa Popoldo deu de cara com a patroa muito ouriçada, que, pelo que se comentava à boca miúda, punha uns galhos no velho. Na ocasião, Joyce publicou no seu blog que tudo não passou de traquinagem.
foto: Eve Arnold, 1955.

15 junho, 2010

O presságio

Espalhou-se que o menino nasceu com “feições equinas”, uma cara comprida e muito feia, o que teria feito a enfermeira dizer: Cruzes, doutor, que menino feio! Feio é o que vai acontecer nessa cidade dia dez, teria respondido o recém-nascido, ao que a enfermeira desmaiou, ou caiu morta. Em seguida a criança faleceu, do que se conclui que teria vindo ao mundo apenas para pressagiar a desgraça. Outra fonte diz que dele saíram asas e que saiu voando janela afora, porém não se dá crédito a essa versão, pois por motivos de higiene, não há janelas que se abrem na maternidade. O que interessa é que na noite do dia dez uma intensa chuva fez cair a energia, e as pessoas saíram às ruas mesmo debaixo do aguaceiro para implorar aos céus, e telefonaram a todos os conhecidos para se despedir, e até aos desafetos para acertar as pazes e pedir desculpas antes do julgamento final. Como o amanhecer teria nascido normalmente, certa decepção podia ser percebida em algumas crianças que ainda inspecionavam as últimas nuvens com expectativa. Um amigo, que esteve presente na ocasião dos fatos, disse que se riu muito.

14 junho, 2010

Sim, um blog

Escrever um blog é apenas um exercício de presunção e ociosidade, não se deve dar lá muita importância.