28 setembro, 2010

De noite, no quartel

Você sabe que é quando eles perdem o medo das armas que os acidentes começam a aparecer. Até o primeiro mês nada. Depois os soldados gostam de ver as balas pularem. Eles ficam sentados sem ter o que fazer puxando o ferrolho do fuzil pra fazer elas saltarem por cima da perna. Volta e meia essas merdas disparam sem querer. É por isso que a gente grita com eles e xinga a mãe deles, pra eles não relaxarem. Porque é quando eles começam a ficar íntimos das armas que os acidentes acontecem. De vez em quando esquecem que está carregado e morre um.

Ano passado era um soldado que estava detido na cadeia do quartel, por qualquer coisa, uma merda qualquer, e tinha um outro do lado de fora montando guarda que disse, pra tirar uma com a cara do soldado preso, que iria soltá-lo aquela noite pra ele ir ver a namorada. Sabe o que o cara fez? Deu um tiro no cadeado. Segurou o cadeado na mão, apontou a pistola e atirou. Como nos filmes, sabe? Como eles fazem pra arrebentar cadeados nos filmes. Só que com o cadeado na mão. É claro que ele estourou a mão toda, quase tiveram que amputar. E foi reformado sem direito a merda nenhuma por causa disso. Um rapaz novo, até gente boa, mas cabeça fraca. Onde já se viu, segurar o cadeado na mão e atirar.

10 setembro, 2010

Poema para os poetas que não chegaram lá

E agora, José?
E agora, Raphael?
E agora, João?
E agora, ambição?
Drummond morreu pobre.
Bandeira, remediado.
João Cabral só não morreu pobre porque foi diplomata.
Você vai morrer pobre?
Porque, convenhamos, diplomata você não vai ser.
Então, como faz?
Aprende cirurgia?
Tenta a loteria?
Insiste em veterinário?
Vira funcionário
público?
E então, como faz?
O dinheiro acabou,
o mês, ainda não.
O leite sobrou,
mas já era o pão,
cujo preço, não cabe neste poema.
Ferreira Gullar escreve pra Folha.
Você não imprime,
pra economizar folhas.
Paulo Leminski dava aula em cursinho.
Mas você tem medo de dar aulas.
E também ele falava latim,
e tudo se resolve mais fácil pra quem fala latim.
Você nem o inglês sabe direito.
Vá tentar a vida em Pasárgada,
onde você não é chegado nem de um vereador.
Você vai mesmo é acabar que nem aquele bicho,
aquele que era um homem, meu Deus.
Você, que nem em Deus acredita.
Ah, Raphael... você nunca vai ter jeito!

05 setembro, 2010

O olho de vidro do professor

Vem ele, o esquerdo seguindo o que ninguém vê, um passarinho hipotético congelado numa prótese esférica e baça, o direito mira impiedoso: Vocês não estudaram nada? Vai ter outro teste no final da aula! Será possível que vocês não conseguem acertar um probleminha desses? Eu tô ensinando um monte de mongolóides? Vocês não têm disciplina?

Professor, eu posso ir no banheiro?

Não, aguenta, moleque!

“Frita o peixe vigiando o gato!”

Burrice tem limite, dona Débora! Você viu o que escreveu no seu teste? Eu vou ler pra turma toda poder rir com as pérolas da senhora.

“Ciclope safado!”

Presta atenção, senhor Pedro! Isso aqui não é parque de diversões, deixa de olhar pela janela, você tem que prestar atenção é no que eu digo, e só! Tá procurando o quê, a mamãezinha com leitinho morno? Você não está na sua casa, rapaz.

“Ah, se eu tivesse coragem: Professor, empresta esse seu olho pra eu jogar uma birosca?”