14 agosto, 2010

Cachorridade


Eles são de modo geral magros, famintos, feiosos, e experientes rasgadores de sacolas: comem o que há para comer. Têm uma orelha caída e a outra levantada. Mancam de uma pata. O banho é da chuva, que só piora o aspecto e levanta um cheiro tão deles que é conhecido pelo nome que têm. Esses cachorros de rua, lobos da cidade, asselvajados, seus instintos atiçados por conta da falta de coleira, fora o que aprendem de moderno por força da necessidade, como a destemida arte de atravessar as ruas desviando dos carros, são bichos que criados pelo homem e abandonados pelo homem aprenderam a levar em relação a nós uma vivência paralela.

São um efeito secundário da urbanização, como os mendigos, porque em cidade pequena quem é bêbado e doido todo mundo sabe quem é, e filho ou tio de quem é, assim, não se deixa dormir na rua quem se conhece, mesmo que seja para não dizerem que a família não tem dó. Também os cachorros na roça têm cada um a sua casa, ainda que só passem por ela para rapar o resto do almoço.

A experiência da rua ensinou por costume a esquivar das pernas das pessoas: sempre esperam um chute. Mas nem todos são de uma diplomacia tão esquiva com o ser humano, uns deles são companheiros fiéis de homens que também são de rua, e formam entre si a matilha de vira-latas mais original.

Sem vacina e xampu, não têm inveja dos cães das casas que olham através das grades nos jardins, e às vezes oferecem uma cheirada focinho a focinho, um cumprimento entre indivíduos de uma espécie sem preconceitos. Imperadores das noites vazias, perturbando as madrugadas das pessoas de bem, combatendo por fêmeas no cio disputadas a rosnados e agudos caninos que ameaçam a carne inimiga – no meio da confusão, até o que o rabo caiu amputado pelas bicheiras acredita que tem a sua chance; eles vivem pouco, média de três anos, é o que se diz, mas plenos de uma coisa que se pode chamar, sem preocupação com estilo, de “cachorridade”.

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