11 maio, 2011

Os cortes


Para você, Coração,
para quem não bastava gozar
mas era preciso sangrar,
componho este poema.
Para você, Coração,
para quem florar em rubro foi viver,
deveria escrever
uma canção.
Mas eu não sou um homem de canções, meu bem,
e de resto,
eu também não sei cantar.
O que eu devia mesmo é aprender
a ser cortado e a cortar,
a ser o corte,
a revelar-me
como você me fazia.
Você, que para mim em
fendas se abria,
sem pudor nem
medo.
Mas eu não sou um homem de revelações, meu bem,
você era carne viva e
hemorrágica de vida,
eu sou madeira velha que
já nasceu sem sangue.

E quem ensina às lâminas?
Quem lhes assopra
as suas falas?
O toque suave,
aveludado,
o metal dúctil e
laminável,
e os fios
micrometricamente afiados.
Um carinho mais
agudo,
ferramenta do homem
que vem se cortando desde sempre:
retalhamento,
esfacelamento,
desfigurado equilíbrio,
exercício de cutelaria
nas mãos de um deus afiador de feira.

Cortes de papel
no dedo,
cortes de gilete
no rosto.
E a profundidade não basta
aprofunda-se o corte,
e a vida,
mais que nunca viva,
aflora,
fonte pulsante colorida,
pelo coração da Terra
propelida,
quente lava de rubi.

Mas você quis um corte mais fundo,
Coração,
e eu não sei porque você
foi querer isso.
E no caminho da lâmina
se abriram
duas margens cor-de-rosa
onde brotou um rio sagrado
revelando
segredos que eu,
na minha incompetência,
nunca descobri
e nunca saberei,
porque para mim agora já é
tarde.

Só o princípio, meu bem,
foi inesperado,
o fim, anunciado,
como todo fim:
pingaram as últimas gotas,
respingaram e ondularam.
Não houve memória nem
cicatriz,
apenas você e mais
você derramada.
E eu,
cada vez menos,
me resto um pouco
cada dia.

Ah, Coração, se você soubesse...

Na vida tudo é
facas, carne e sangue,
e as fendas abertas na
carne.
Sangrar significa estar
vivo
e para morrer basta
estar vivo.
Todo mundo sabe disso,
e como corta,
Coração!

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